E nem tudo é trabalho

Há algumas semanas acabou mais uma fase do meu flerte com os queijos e acho que acabei juntando muita coisa pra contar. Primeiro vou tentar mostrar um pouco do que fazíamos lá e depois eu vou dando uma palhinha sobre algumas coisas que tenho vontade de escrever e contar sobre essa experiência. A verdade é que queijo acabou quase como um coadjuvante dentro de tudo o que eu vivi aqui.

 
Bom, eu falei no último post que o trabalho estava bem pesado e que não conseguia imaginar como seria quando começássemos a trabalhar não somente com a ordenha, mas também fazendo queijo. A verdade é que foi duro sim, mas foi também extraordinário e o desafio agora é contar em algumas poucas (muitas) linhas toda a beleza que eu vivi.

 
Em Reusch morávamos a 1400 metros de altitude, ordenhávamos as vacas e levávamos o leite para a queijaria. Agora em Olden a 1900 metros de altitude não tinha mais a estrada perto para levar o leite e para transportar os 400 litros de leite que tirávamos por dia só mesmo transformando-os em queijo.

 
A cabana onde moramos estava fechada há 30 anos, ela foi construída depois que uma avalanche na década de 80 levou embora tudo o que tinha pela frente, depois de reconstruída ela nunca foi realmente usada. Tivemos bastante trabalho para por tudo em ordem, torná-la habitável e ter a estrutura para fazer o queijo. E quando digo estrutura, não imaginem nada muito elaborado não, fazíamos queijo de uma maneira muito simples e bem tradicional.

 
Para se fazer um legítimo Alpkässe é preciso seguir algumas regras um tanto quanto rígidas e controladas. Por exemplo, as vacas devem se alimentar exclusivamente de pasto dos Alpes, esse pasto no caso é uma mistura de flores e ervas e nada de capim plantado como a gente faz no Brasil, o queijo tem que ser feito em fogo aberto, na lenha e sem esquentar com vapor ou gás, tem que ser feito em um tacho de cobre e a receita também deve ser seguida à risca, aí entra a temperatura que a massa do queijo deve ser esquentada antes de enformar (52°C), o tipo de cultura utilizada e outros detalhezinhos mais.

 
Lá em Olden moram 3 famílias durante 4 semanas no verão. São só algumas semanas por causa da altitude, das baixas temperatura e da neve que custa derreter. As 3 famílias sobem com o gado no mesmo dia, passam esse tempo fazendo queijo e descem também juntas nessa procissão de vacas das fotos.

 
A 1900 metros o acesso à estrada fica mais difícil e demora uns bons 30 minutos com um 4×4 para se chegar à boca da estrada, essa é uma das opções para descer. As outras são a pé demorando um pouco mais de 1h ou de teleférico que, logicamente junto com o subir e descer a pé, era o meu meio de locomoção preferido. O bondinho funcionava das 9 às 16:40 e era o antes ou o depois desse horário que vinha a parte legal. Como moradores nós tínhamos uma chave que abria e “dava partida” no teleférico e lá ia eu pilotando o bonde sozinho. Na nossa casa eu era o único que sabia exatamente como o negócio funcionava e quando tinha que levar alguém até o vale era eu o piloto do bonde. E era uma piada pronta “Você tá de brincadeira que é um brasileiro que vai me levar no bonde?” Pois é, era assim e caso alguém se incomodasse que caminhasse até lá em baixo. Mas a verdade é que no final das contas todo mundo se divertia com o brasileiro piloto de bonde.

 
Os nossos vizinhos lá em cima era a família Gander, uma família que ao contrário da nossa que estava fazendo essa experiência pelo primeiro ano, já estava no 19° verão lá em cima. O nossos estábulos eram vizinhos de porta, era um olhando pro outro de uma distância de alguns poucos metros. No começo eu não gostei muito dessa proximidade, mas o tempo me mostrou outra coisa. O Markus, era a nossa referência para queijo e nos ajudava bastante, com dúvidas sobre os tempos, sobre a cultura, sobre o tamanho dos grãos da massa e qualquer outra coisa sobre queijos ou Alpes em geral. Tivemos algumas extensas conversas sobre pasto e qualidade do leite. A Kati sempre vinha com alguma guloseima feita por ela, eu ainda sonho com o merengue doble creme e aqueles rolinhos de massa fina que ela fazia para comer junto com o café. Os 2 filhos do casal ficavam no vale cuidando dos queijos que estavam maturando e dos pastos que precisavam virar feno para o inverno.

 
Se em Reusch tínhamos que nos desdobrar para tirar o leite e descer para fazer o feno no vale, em Olden essa dinâmica mudou um pouco. Em algumas semanas eu aprendi muito, o Urs ganhou confiança no meu trabalho e assim passamos a nos dividir. Quando a previsão era de alguns dias quentes e ensolarados, ideais para se fazer feno, o Urs descia logo depois do almoço para o feno e me deixava sozinho com a Karin e as crianças. Eu fazia a ordenha praticamente sozinho e me alegrava quando pintava também algum outro trabalho pelas montanhas.

 
Muitas vezes tinha que fazer alguma coisa nos pastos, como arrumar as cercas, levar estacas novas ou sal para as novilhas. Cada vez que eu saía de casa era presenteado com as vistas mais incríveis do mundo. Quem me conhece sabe que eu adoro caminhar e trabalhos como levar sal para as novilhas envolvia uma caminhada de mais ou menos 2hs ao redor do vale que se formava lá em cima. Eu levava o sal para umas 100 cabeças de gado, ia da grupinho em grupinho colocando o sal, um sal fino como o nosso de cozinha, em cima das pedras, com uma superfície suficientemente plana, que eu encontrava pelo caminho. Eu ia com calma, me inebriando com a vista e observando cada uma das novilhas para ver se alguma estava com uma pata mais inchada ou se encontrava alguma outra coisa fora do comum.

 
Eu adorava esse trabalho ou qualquer outro que me colocasse fora de casa nas encostas de Olden. Eu adorava e a Karin também. Era a Karin que saía de manhã para buscar o gado para a ordenha. Ela saía às 7 da manhã, enquanto nós ainda estávamos tomando café, ela aproveitava que o Felix e o Louis ainda estavam dormindo. Ao longo do dia seria difícil ficar longe de casa e das crianças e ela não perdia nenhuma oportunidade pra sair e andar por ali. O Urs é filho de uma família que sempre trabalhou na terra, diferentemente da Karin. Era bonito ver como ela se encantava e se deliciava com essa vida simples do campo, com ela não tinha tempo ruim para as limitações que tínhamos lá em cima (chuveiro, geladeira, aquecedor…) e estava sempre com um sorriso estampado no rosto.

 
O trabalho com o Urs foi bem desde o começo e com o tempo só melhorou. Ele respirava trabalho e eu conhecimento, não podia mesmo dar errado. Trabalhávamos muito e o cansaço era só um termômetro que apontava o tanto de coisas que a gente fazia, era também sempre regado a milhões de perguntas da minha parte. E é daí que vinha a importância da língua. Com o tempo eu comecei a entender um pouquinho melhor o dialeto e parei de me preocupar tanto em entender tudo e me deixei levar pelo rotina.

 
Agora esse momento passou e me vejo de novo no Brasil, cheio de sonhos e planos, talvez cheio até demais, eu peno pra tentar encaixar tudo dentro da minha cabeça inquieta. Mas agora é isso, os passos que foram dados me trouxeram até aqui e agora eu me encontro com uma corrente me empurrando para ainda mais longe. E essa corrente que me leva não me deixa fazer outra coisa senão continuar apostando nos sonhos. Eu brigo um pouco com meu alter ego e me deixo levar.

 
Eu já penso em voltar, dou a desculpa para mim mesmo que vou pela paisagem, ou pelo conhecimento, mas a verdade é que o que eu quero mesmo é reencontrar meus amigos.

 

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Obs.: As legendas estão no izinho do slideshow

 

3 thoughts on “E nem tudo é trabalho

  1. André

    Que maravilhosa essa experiência e as vistas! Muita vontade de caminhar por ai também!

    Ps: da pra entender porque o bom queijo é caro o-o

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